Identidades Profissionais Construídas na Prática Docente1

Maria Inês Marcondes
Educação/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Maria de Lourdes Tura
Educação/Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Resumo

Este estudo pretende analisar a trajetória de formação profissional de um grupo de professoras das séries iniciais do Ensino Fundamental, focalizando a construção de identidades que foram assim se constituindo. Os sujeitos dessa investigação são um grupo de docentes (N=127) matriculadas em um curso de formação de professores de nível superior na cidade do Rio de Janeiro. A análise realizada teve por base um questionário e entrevistas semi-estruturadas. Verificou-se que os conhecimentos escolares se apresentam como um significante central, que reflete em diferentes momentos de enunciação – entre eles em um teste de associação livre que teve esse termo como motivação – a dinâmica de construção da identidade docente em suas diversas formas de expressão e posicionamento. A tarefa de transmissão dos conhecimentos escolares marca a centralidade do professor no contexto da instituição pedagógica e legitima a forte valorização da atividade docente e as idealizações formuladas em torno da missão do mestre. Essas idealizações se apresentam como um consenso que reúne e congrega as diferentes identidades presentes em cada um dos sujeitos e presentes no grupo como um todo. Os conhecimentos escolares, importantes, necessários, afastados da realidade de vida dos alunos, de transmissão dificultada pela inadequação dos recursos pedagógicos, pelos déficits dos estudantes, pela crise da estrutura familiar e social, estão – de acordo com a percepção das professoras – baseados na estrutura acadêmico-disciplinar, nos livros didáticos, na oportunidade das aulas, nos esforços de alcançar a disciplina escolar e em tantas outras questões que os fazem entendidos como conteúdos preestabelecidos e reificados. Enfim, eles são os fatores do sucesso ou os grandes empecilhos à realização da tarefa de ensinar em meio a formulações conflitantes, que deixam emergir as múltiplas e híbridas identidades profissionais das professoras.

Palavras-Chave: identidade profissional – práticas docentes – conhecimentos escolares – disciplina escolar

Abstract

This study aims at analysing the Professional education path followed by a group of elementary school teachers in charge of initial grades, focusing on the construction of their identities along this way. The subjects of this research are a group of teachers (N= 127) currently enrolled in a Teacher Education course at the undergraduate level in Rio de Janeiro. The analysis of data took into account a questionnaire as well as semi-structured interviews. Results indicated that school knowledge is a central element of meaning reflecting in different samples of discourse the dynamics of the construction of teacher identity in its different expressions and positioning, among which a free association test triggered off by this expression. The task of transmitting school knowledge underscores the centrality of the teacher in the context of the pedagogical institution. It also legitimizes the great value attributed to the activity of teaching as well as the idealization of the teacher’s mission. These idealized conceptions are put forward as a consensus that gathers and assembles the different identities present in each of the subjects and in the group as a whole. Even though school knowledge is considered important and necessary, it is also perceived as distant from students’ lives, as difficult to transmit due to inadequate pedagogical resources, to students’ limitations and to crises in social and family structure. This type of knowledge is based – according to teachers – on the academic structure encompassing the different subjects, on text books, on what happens in classrooms, on efforts to achieve discipline in schools and on many other issues that contribute to the perception of school knowledge as pre-established, reified content. To sum up, school knowledge is seen as both the success factor and the insurmountable obstacle to the achievement of the task of teaching, carried out amid conflicting formulations that allow for the emergence of multiple and hybrid professional identities of teachers.

Key words: Professional Identities - Practice of Teaching

1. Introdução

        Como se constroem as identidades profissionais dos professores? Qual a relação dessa construção com a prática docente?
        Tomando por base essas questões iniciais esse artigo discute dados obtidos na pesquisa “Os professores e as dimensões culturais dos conhecimentos escolares”. Pretende enfocar a construção de identidades profissionais e concepções sobre as práticas pedagógicas e os conhecimentos escolares, a partir de processos de formação e socialização docente, vivenciados por um grupo de professoras da rede pública de ensino da cidade do Rio de Janeiro.
        Nosso ponto de partida é o pressuposto que a identidade profissional docente é construída num processo dinâmico, contínuo e plural, que se estabelece na diferença e no contraste e, nesse sentido, representa um campo contestado e de lutas, uma forma de afirmação de posições e resistência. Por esta razão se pretendeu ampliar a compreensão dos processos sócio-históricos de produção da identidade profissional que, no contexto atual de formação de subjetividades, comporta a pluralidade de significações e referentes e, em decorrência disto, a existência de identidades multifacetadas. Entendemos, pois, a construção de identidades como articulada a práticas sociais e a marcações simbólicas (Woodward, 2000) que lhes dão sentidos.
        Os conhecimentos escolares se inserem no campo de produção de identidades docentes, desde sejam concebidos para além de sua apresentação mais formal, analisados como organizadores de sentidos no espaço escolar e se afirme sua expansão e atualização fora dos documentos legais ou de um conhecimento oficial e legitimado. Nesse sentido, se vinculam à dinâmica das relações sócio-culturais de um tempo e lugar.
        No caso em estudo, pôde-se observar que a afirmação de posições e resistências, que esse processo demanda, se articula com o fazer docente e, em especial, com a construção/reconstrução de concepções e posturas sobre a prática pedagógica e os conhecimentos escolares, que são elementos-chave da ação educativa na escola.
        Obtivemos os dados analisados aqui através de um questionário semi-estruturado; um teste de associação livre de palavras, com o termo indutor “conhecimentos escolares”; e entrevistas semi-estruturadas.
        As perguntas abertas do questionário e o teste de associação livre de palavras foram analisados segundo estratégia que possibilita a condensação dos diferentes elementos da enunciação em um sistema de classificação, que parte de critérios de proximidade semântica (Bardin, 1979). As perguntas fechadas foram tabuladas com auxílio de um gerenciador de dados e analisadas através de tratamento estatístico.
        O material coletado é de grande densidade tanto no que diz respeito às concepções das professoras sobre a prática educativa, quanto aos aspectos sócio-culturais de sua origem social, formação e socialização profissional.
        As entrevistas foram realizadas com 20 professoras e foi concebida de forma semi-estruturada e em profundidade para garantir a enunciação livre a respeito de temas relativos aos processos de socialização profissional e construção de identidades, que precisavam ser melhor elucidados. Para facilitar a reprodução do que foi elaborado nas entrevistas, fez-se uso de gravador, após o consentimento das interlocutoras, que tiveram o seu anonimato individual e institucional garantidos.
        Os sujeitos desta investigação constituíram-se de um grupo de 127 docentes, que estavam matriculadas em um curso de Pedagogia. O referido curso se beneficia do fato das alunas serem professoras regentes de turmas das séries iniciais do Ensino Fundamental e que estão tendo a oportunidade de refletir sobre sua prática pedagógica na universidade. O enfoque construtivista é o predominante nas diferentes disciplinas do currículo.
        O grupo pesquisado tem as seguintes características: 100% são do sexo feminino; 73% nascidas no Rio de Janeiro ou em sua Região Metropolitana e 7% nasceram na Zona Rural; com relação à moradia, houve uma tendência (65%) para um deslocamento geográfico de áreas mais afastadas do centro de cidade para áreas mais próximas; e a profissão dos genitores e dos cônjuges se caracteriza por exigir pouco investimento em escolarização (cerca de 75%). Em relação à educação formal, todas fizeram o curso normal de nível médio, 7,5% delas fizeram também outro curso de nível médio e outras 7,5% delas já tinham um curso superior concluído. São aspectos que indicam uma direção tomada no sentido da docência e uma trajetória de ascensão social. Com relação ao exercício do magistério, 68% das professoras têm de 1 a 10 anos de experiência.

2. Discutindo a identidade da professora

        As questões centrais que examinamos acerca da direção tomada pelo grupo de professoras com relação à docência e ao processo de ascensão social ocorrido na vida destas mestras são aspectos importantes ao se considerar a construção da identidade profissional, que se iniciou, em alguns casos, em um percurso baseado mais em uma imposição da família ou pela possibilidade “única” de formação de nível médio no local de moradia, nas palavras de algumas dessas professoras:

Minha mãe me inscreveu no curso normal, eu fiz, passei e sou professora. Ela não me perguntou se eu queria. Me adaptei ao meu trabalho, mas não escolhi essa profissão (2º/9) / Cai no magistério de pára-quedas. Eu ia fazer no 2º grau um outro curso que não era o curso normal, mas não tinha mais vagas e eu acabei fazendo o curso normal e estou na profissão até hoje (2º/12) 2

        Vemos assim como significados fortemente cristalizados nesse grupo social marcam a valorização da profissão docente e a isso se acresce o aspecto pragmático que pode representar a possibilidade da profissionalização com a conclusão de um curso de nível médio para grupos sociais de menor poder aquisitivo.
        Nessa relação entre o social e o simbólico, pode-se observar, em muitas afirmações das professoras, o processo de apropriação de um sentido de missão, vocação ou dom como próprio de sua profissão, o que, muitas vezes, entra em conflito com outras formulações da própria professora que indicam posições críticas com relação à prática docente. Elas dizem que:

Bom, eu sou professora por vocação, realmente eu amo o meu trabalho e eu acho que nasci professora (1a/12)/ Ah! Eu sempre associei muito a profissão ao meu dom. Vamos dizer assim: eu sempre gostei dessa coisa de ser professora (1a /8).

Vemos também nas entrevistas que há indícios de que no processo de escolha profissional algumas professoras foram influenciadas pelo exemplo de bons professores.

Eu acho que a minha escolha profissional se deu pela minha admiração pelos meus professores das séries iniciais. Foram aqueles professores... principalmente a minha alfabetizadora (3a/9). / ...foi a minha alfabetizadora...ela me marcou muito e eu acho que o mais bonito disso é que há um ano atrás alfabetizei a neta dela (CA/12).

        Pode-se dizer então que se na construção social da identidade profissional a variedade do contexto sócio-cultural em que viveram e vivem as professoras é de importância fundamental, a afirmação política das identidades exige alguma forma de autenticação e, muitas vezes, isso ocorre a partir da lembrança da história do grupo cultural (Woodward, 2000). No caso em estudo, foram inúmeras as histórias contadas sobre a experiência dos primeiros anos na escola, as expectativas familiares, os recursos para alcançar o sucesso, a verificação das transformações da vida, as precárias condições de trabalho. Processo esse que não se distanciou da forte valorização da docência e da revitalização do gosto pelo trabalho pedagógico.
        Ao examinar os questionários, vemos que as professoras deixaram registradas concepções a respeito do "ser professor" que se centraram nitidamente em perspectivas muito idealizadas da relação professor-aluno, que se espraiavam em ideais magisteriais ligados à responsabilidade de formação do cidadão-crítico e ao progresso individual. O interesse pela formação do trabalhador foi, no entanto, muito secundarizado, mantendo-se mais fortemente a preocupação em propiciar aos alunos e alunas formas de enfrentamento das desigualdades sociais.
        Com relação às razões da escolha da profissão, pode-se estabelecer, a partir do que foi enunciado pelas professoras, um padrão tradicional que condensa, idéias relativas ao “amor às crianças” e à “importância dos conhecimentos escolares”. O amor pelas crianças é, muito freqüentemente, apontado como uma razão que mobilizou a opção pela profissão e se associa às características pessoais da professora. O conhecimento escolar, nesse caso, é seguidamente apresentado como tendo um valor intrínseco e inconteste de esclarecimento e emancipação, o que ficou bem sintetizado na formulação de uma professora, que valoriza na atividade docente, especialmente, a possibilidade de “passar o conhecimento”.
        Um outro padrão mais crítico centra suas referências na perspectiva da “transformação”, dando a essa idéia um sentido de crítica às metodologias e de práticas pedagógicas vigentes.
        É fundamental ressaltar que, como aponta Woodward (2000), na produção de identidades é importante a delimitação da diferença e quanto a este aspecto pode-se observar que, na construção de sua identidade profissional, a professora se contrapunha, freqüentemente, aos processos de banalização da atividade pedagógica, ao rebaixamento do nível de exigências de aprendizagem ou à mercantilização da instrução. Além disso, algumas professoras construíram sua identidade em oposição aos seus mestres e à organização pedagógica das escolas em que estudaram. É o que se pode verificar na fala da professora que afirma:

Eu tive uma experiência muito negativa. Eu estudava numa escola particular, na primeira série, e era uma escola que a gente era sabatinado pela professora. Então quando ela entrava em sala, nós tínhamos que levantar e só nos sentávamos por ordem dela. Ela argüía...Eu tento não agir com meus alunos dessa forma, porque eu tenho esse trauma (CA/10).

3. Identidade, socialização e prática docente

        Quando se perguntou no questionário onde as professoras aprenderam ou qual a origem do que aplicavam em sua prática docente, elas informaram que o saber cotidiano, a aprendizagem construída durante sua vida profissional foi o que teve o maior peso no seu processo de socialização docente (82,8% dos registros). Em seguida, afirmaram a importância do que foi aprendido em outros ambientes de formação como a família, grupo de amigos, grupos de estudo etc. (28,2%) e deram um peso menor aos Cursos de Formação de Professores (20,4%).3 Essas informações são especialmente relevantes se levarmos em consideração que as professoras que respondiam a esta questão estavam sob a influência do ambiente acadêmico.
        Nas entrevistas, as professoras ressaltaram a importância marcante das suas primeiras experiências. De forma geral, o “choque do real” (Huberman, 1992) foi a regência de turmas consideradas como as piores da escola e geralmente essas se constituíam em classes de alfabetização com alunos fora da idade. Para enfrentar essa situação, as professoras revelaram que a sua formação, considerada como os conhecimentos teórico-práticos aprendidos nos Cursos de Formação de Professores, não foram suficientes. Tiveram, então, que se apropriar daquilo que a cultura da escola que trabalhavam havia produzido e contaram com o auxílio de professores mais antigos. Na superação dessa dificuldade inicial, algumas professoras relatam que investiram em maior dedicação ao trabalho, no conhecimento dos interesses e necessidades de seus alunos e alunas e na aplicação de metodologias mais ativas. É o que se pode perceber na fala da professora, que lembra: “Se não fosse a minha orientadora, eu teria desistido do magistério (3ª/7)”.

3.1 A organização das turmas – a busca da homogeneidade

        As concepções das professoras, que foram sujeitos da investigação que realizamos, sobre a organização das turmas – o que inclui o contexto do planejamento das atividades pedagógicas, a metodologia de ensino e os conteúdos propostos para o aprendizados dos alunos e alunas – dão pistas para se entender como elas concebem as questões relativas ao currículo escolar.
        O que primeiro se deve destacar nesse caso é o impasse criado pela percepção de que o que se cristalizou como modus operandi na construção do conhecimento escolar esbarra na constatação das transformações sócio-culturais contemporâneas. A reflexão acadêmica vinha provocando a tomada de novas posições, porém pode-se distinguir nesse grupo a ambigüidade entre concepções tradicionais e perspectivas que se vinculam a uma pedagogia crítica. Por exemplo, nos registros das professoras ficou anotado que:

Poderíamos caminhar juntos, mas acho que não existe turma homogênea, há sempre diferenças.”(Q.49)4 / “É difícil, acho até impossível existir uma turma homogênea, mas se encontrasse seria bem mais fácil, pois não precisaria quebrar muito a cabeça, era só seguir planejamentos prontos há semanas ou até anos.”(Q. 73) / “Por um lado é mais fácil um trabalho que segue um mesmo ritmo, mas a riqueza das experiências aparece nas diferenças”(Q.46) / “O que seria uma turma homogênea se cada indivíduo é um indivíduo na sua singularidade (Q.13).

        Como forma de resolver a tensão criada pelo ideal de padronização de atividades acadêmicas, de homogeneização de condutas e ritmos de aprendizagem e a ilusão de uma apropriação coletiva de conteúdos de aprendizagem, pelo qual o trabalho escolar tradicionalmente se pautou, houve um pequeno grupo de professoras que usou o argumento da “troca de experiência”, como uma das vantagens decorrentes do esforço de se alcançar uma certa homogeneidade na construção dos conhecimentos escolares. Elas disseram:

Pode-se aproveitar muito mais a experiência deles (Q.68) / A circulação de informações é possível e acontece numa situação de troca, cooperação e cumplicidade. As crianças têm experiências semelhantes para compartilhar e a formação de grupos pode se dar pelo critério das dificuldades específicas, por exemplo (Q. 06).

        Para se ter à idéia do que se apresenta como um paradoxo que envolve a idéia de maior “troca de experiência” em uma turma que se organize para realizar um trabalho mais homogêneo, vale observar o que escreveu uma professora a respeito desse tipo de organização: “Fica mais fácil de alcançar os objetivos previstos, embora não tenha nenhuma troca pois são muito parecidos”(Q. 12).
        A professora, exagerando, fala, então, em “nenhuma troca”, mas ainda supôs a possibilidade de se reunir numa turma estudantes muito parecidos.
        Por outro lado, houve um grande número de professoras assinalando a possibilidade de “troca de experiências” como a maior vantagem de uma turma que é organizada no pressuposto de sua heterogeneidade.
        Enfim, quando uma professora afirmou que “em termos de trabalho é muito mais prático e fácil” (Q. 53) a atividade educativa que se dá em uma turma organizada para um trabalho homogêneo, o que essa docente estava afirmando é que a prática pedagógica – de acordo com o que está organizado no currículo escolar, na estrutura burocrática dessa instituição e pelas condições de trabalho do professor – foi tradicionalmente pensada para se manter dentro de padrões estabelecidos e normatizações requeridas. Ou seja, a homogeneização da prática docente corresponde à uma “resposta adaptativa” do professor, como afirmou Gimeno Sacristán (1995), que vai se cristalizando em crenças e valores que estabelecem um estilo de trabalho docente e que dão configuração ao paradigma dominante na prática pedagógica, marcado pela normatização de atitudes e modos de comportamento, a paridade de ritmos e processos de aprendizagem e a seleção dos mesmos conteúdos de ensino. Isso se inseriu na cultura escolar como seu modus operandi e, por isso, está profundamente internalizado na forma de se conceber e planejar a ação educativa na escola. No entanto, “a tão sonhada homogeneidade não existe na realidade escolar e pode ser a causa de muita estigmatização de alunos rotulados como ‘fracos’ ” (Ludke e Mediano, 1992:50). Os “fracos” são os que não entram no ritmo da turma. São os diferentes.
        Nesse ponto, vale destacar o que afirmou uma professora sobre a possibilidade de organização de uma turma de acordo com os padrões e normatizações da tradição pedagógica: “...todos vivem na mesma realidade. O professor não precisa explicar as diferenças (Q.62)”.
        O professor, que “não precisa explicar as diferenças”, está de certa forma, se desobrigando de ter que lidar com algo que é marcante e profundamente complexo de analisar que são as diferenças não apenas culturais, mas sociais e econômicas que distinguem alunos, famílias e grupos, marcam fronteiras sociais e estabelecem, de acordo com o que se tem observado na pesquisa sociológica, aqueles que terão sucesso na escola e aqueles que deverão fracassar. Ou seja, a idealização da possibilidade de construção da homogeneidade entre os alunos e alunas traria como conseqüência implícita a negação de suas diferenças. As professoras tendem a planejar as atividades pedagógicas de forma a se alcançar a homogeneização de condutas, conhecimentos e ritmos de trabalho e de se ter a expectativa da ocorrência de uma seqüência histórica de ritos, disciplina e procedimentos didáticos. Qualquer alteração que a escola faça em sua organização tradicional defronta-se com práticas cristalizadas e hábitos enraizados que não se transformam de uma hora para outra. Recentemente alguns autores, como Freitas (2003) e Knoblauch (2003), têm demonstrado que o sistema de ciclos tem contrariado a lógica já instituída da escola. Esse sistema, hoje implantado em várias redes públicas de ensino do país, tem sido um grande desafio para os professores/as, pois pressupõe a aceitação de um desempenho heterogêneo. O risco da aceitação da diferença incluiria ter que supor, por exemplo, a necessidade de uma seleção e organização de conteúdos de aprendizagem mais plurais. As professoras revelaram, no entanto, suas dificuldades em realizar mudanças nas formas de organização das atividades escolares e, apesar de um grande número delas já ter incorporado os princípios de uma pedagogia crítica, na prática essa novidade ainda é pouco vivenciada.
        O sistema de ciclos de aprendizagem hoje implantado na rede pública municipal de ensino tem sido um grande desafio para os professores na medida que pressupõe a aceitação do desempenho heterogêneo. Necessita-se de um professor/a que trabalhe de forma diversificada, avalie periodicamente seus alunos, atuando sobre as dificuldades dos alunos de forma a superá-las.
        A dificuldade apontada pelos professores de lidar com a heterogeneidade também foi relatada por Pinto (1999), apoiada em uma investigação que realizou, apesar de ter observado professoras que conseguiam trabalhar com alunos de diferentes níveis em uma mesma sala de aula em escolas públicas com poucos recursos. Num outro sentido, Cruz (1999) indica que as próprias professoras se dizem despreparadas para atuar com os alunos da escola pública por desconhecerem as vivências das camadas populares. O grupo de professoras que foram os sujeitos desta investigação, no entanto, vem, em sua maioria, de grupos sócio-culturais muito próximos daqueles dos estudantes das escolas públicas.
        No caso em estudo, o que se pode concluir – a partir da informação de que para o grupo de professoras que são os sujeitos dessa investigação sua prática pedagógica é mais influenciada pela cultura escolar e pela cultura de outros ambientes de formação como a família, o grupo de amigos etc. – é que essa questão está mais intrinsecamente ligada a aspectos mais amplos do processo de formação e socialização das professoras, no que se deve distinguir a rede de sentidos e significados conferidos à prática docente e aos conhecimentos escolares.

3.2 As professoras e os conhecimentos escolares

        No teste de associação livre de palavras, que teve por referente os conhecimentos escolares, algumas professoras registram termos que em seu conjunto referendavam diferentes abordagens (perspectivas críticas e tradicionais, por exemplo), indicando os conflitos que se interpõem entre a teoria e a prática.
        É interessante notar que um grupo de professoras (7) expressou sua concepção com relação aos conhecimentos escolares classificando-os como “chatos”. A recorrência do termo ao se referirem ao motivo central da atividade pedagógica que realizavam e que é um referente básico na construção de sua identidade profissional parece demonstrar a perplexidade de algumas professoras diante de uma rede intrincada de sentidos algo contraditório, algo distantes do que se propunham realizar. Isso é corroborado quando se relaciona esses termos com respostas dadas pelas professoras, tanto nos questionários quanto nas entrevistas, com relação aos obstáculos que encontram para a realização de seus projetos pedagógicos.
        As posições mais críticas indicaram, de forma geral, como os conhecimentos escolares deviam ser (nível do ideal) ou como eles são na prática escolar (nível do real). Assim, temos a indicação de conhecimentos escolares que deveriam ser: “atualizados”, “criativos”, “críticos”, “formativos”, “ligados à vivência do aluno/aluna” e “capazes de “ampliar a visão de mundo”; ou conhecimentos escolares que na realidade são: “rígidos”, “tabu”, “limitados”, “restritos”, “insuficientes”, “ultrapassados”, “sem sentido”, “fora de realidade”, “supérfluos” e “levam à massificação”. Isso corresponde a 30% do que foi enunciado pelas professoras.
        A tendência maior, no entanto, é a professora associar os conhecimentos escolares a termos que se os ligam ao que estritamente se refere à prática pedagógica e que apontam para a importância do estudo e do esforço individual para aproveitar as oportunidades trazidas pela escola. Nesse contexto, há um grupo representativo de professoras que os associam com a aprendizagem (22), os conteúdos (21), o planejamento pedagógico (9), os recursos didáticos (9), os livros (9), a avaliação (9), a disciplina (8), a escola (6), o estudo (6) e as matérias escolares (3). Há também aquelas que os associam ao aluno (13) e ao professor (18).
        De forma geral, aquilo que no enunciado das professoras se pode distinguir como a tarefa de transmissão dos conhecimentos escolares foi marcada pela centralidade do professor no contexto da instituição pedagógica, o que legitima a forte valorização da atividade docente e as idealizações formuladas em torno da missão do mestre. Essas idealizações se apresentaram como um consenso que reúne e congrega as diferentes identidades presentes em cada um dos sujeitos e presentes no grupo como um todo. Os conhecimentos escolares, ao mesmo tempo considerados importantes e necessários, foram percebidos como afastados da realidade de vida dos alunos, com sua transmissão dificultada pela inadequação dos recursos pedagógico-didáticos, pelos déficits dos estudantes, pela crise da estrutura familiar e social, baseados na estrutura acadêmico-disciplinar, nos livros didáticos, na oportunidade das aulas, nos esforços de alcançar a disciplina escolar e em tantas outras questões que os fazem entendidos como conteúdos preestabelecidos e reificados. Enfim, eles são os fatores do sucesso ou os grandes empecilhos à realização da tarefa de ensinar em meio a formulações conflitantes, que deixam emergir as múltiplas e híbridas identidades profissionais das professoras.

4. Considerações Finais

        Podemos considerar que a multiplicidade de posições e concepções que fazem parte do fazer docente destas professoras desenha uma trajetória que se movimenta de concepções tradicionais – que parecem muito imbricadas na prática pedagógica, da qual são protagonistas – para uma perspectiva entre construtivista e crítica, de acordo com os modelos pedagógicos mais relevantes, que parecem estar sendo construídos na oportunidade da reflexão acadêmica propiciada no Curso de Pedagogia. Esse movimento se insere na trajetória de construção da identidade profissional das professoras, que é um processo complexo no qual cada uma delas a sua maneira se apropria de sua história pessoal e profissional.
        Assim, nesse grupo novas identidades estão se construindo e deixam vislumbrar a ambigüidade entre os padrões da escola tradicional e novos valores exigidos pelas mudanças ligadas aos conflitos sociais emergentes, às transformações sócio-culturais contemporâneas.
        Podemos concluir lembrando que “A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e estar na profissão”(Nóvoa, 1992, p.16).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS
1Esse texto retoma e desenvolve idéias contidas em Tura e Marcondes ( 2002) e Marcondes e Tura (2005).
2As entrevistas serão identificadas pela série que a professora trabalha e os anos de experiência docente.
3Algumas professoras assinalaram como tendo maior influência em sua prática profissional mais de um item da pergunta. No caso daquelas que assinalaram apenas um item, temos a seguinte relação: 51,3% (a prática docente) , 41.9 % (outros ambientes de formação), 6,8% (os cursos de formação docente).
4A fala do sujeito será apresentada só com a indicação do número dado ao questionário no momento da apuração.